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O VERBO SE FEZ CARNE E HABITOU ENTRE NÓS |
EVANGELHO DE JOÃO (PARTE III)
INTRODUÇÃO - O quarto evangelho é o “não sinótico”, ou seja, o único que não
tem a ótica comum a Mateus, Marcos e Lucas, que tentam fazer uma cronologia,
enquanto ele, João, faz teologia. É o evangelho dos discursos. É de fácil
leitura, bom para evangelizar, e faz uma defesa muito forte da divindade de
Jesus. É um dos documentos mais profundos sobre a pessoa de Jesus. Vale a pena
refletir sobre ele.
1. QUEM É ESTE JOÃO?
Ele é testemunha ocular do que narra: 1.14. Em 12.3, parece que sentiu o perfume
da casa onde o evento sucedeu. É preciso nos números: 6 talhas de pedras, 4
soldados ao pé da cruz, o homem doente por 38 anos, 153 peixes apanhados na
rede, etc. Fica bem claro que é um judeu. Conhece a história, os costumes, as
idéias e as esperanças dos judeus. Isto fica claro em 1.17 e 4.5. Sabe dos
preceitos de valor judaicos. No sábado não se podia traballhar, mas podia se
circuncidar um menino. Ele sabe que a circuncisão tinha precedência sobre a
proibição de trabalho no sábado (7.22). Conhece os sentimentos dos judeus
quanto ao sábado: 5.10 e 19.31. Conhece bem o Antigo Testamento e a língua
hebraica. Sabe e interpreta corretamente os significados dos nomes hebraicos:
1.38, 1.41, 5.2, 9.7, 19.13 e 20.16. Ele cita o AT hebraico (em vez de citar a
Septuaginta) e dá sua própria tradução do hebraico para o grego.
Conhece a geografia da Palestina e a topografia de Jerusalém. Havia duas
cidades chamadas Betânia. Ele distingue entre elas (1.28), sabe quem é de que
lugar (1.44), etc.
Somente alguém muito de perto poderia ter as informações que ele tem. Só
poderia citar 2.17 e 4.27, por exemplo, quem fosse um dos apóstolos. Jesus
tinha três mais chegados: Pedro, Tiago e João (Mt 17.1). O primeiro fica
excluído pelas referências do autor a Pedro e porque o evangelho de Marcos é
reconhecido como o de Pedro (que deu as informações a Marcos, com quem tinha
afinidade). Tiago foi morto mais ou menos no ano 44 (At 12.2). A maior
possibilidade é para João. Irineu, Clemente de Alexandria e Tertuliano, no
segundo século, já diziam que João, o discípulo amado, foi o autor do quarto
evangelho. Aliás, Clemente disse que João escreveu para suplementar os
sinóticos.
Existe hoje em dia uma nova teoria sobre a data do livro. Presume que João
escreveu antes dos sinóticos. Talvez já no ano 50. Em 5.2, ele não diz que
“havia em Jerusalém”, mas “há em Jerusalém”. Jerusalém não apenas existia (foi
destruída no ano 70), mas o autor ainda estava lá. Isto mostra que é um
evangelho bem próximo aos eventos que narra.
3.A ESTRUTURA DO QUARTO EVANGELHO
O quarto evangelho pode ser dividido da seguinte maneira:
Prólogo – 1.1-18
(1) O Livro dos Sinais – 1.19 a 11.57
(2) O Grande Sinal – 12.1 a 19.42
Epílogo – 20.30-31
Apêndice – 21.1-23 (O Dia que não Termina)
Segundo Epílogo – 21.24-25
4. O LIVRO DOS SINAIS
Há um trecho chamado de “Primeira Semana” (1.19 a 11.57). Eis o seu esquema:
1º dia – 1.19-28
2º dia – 1.29-34
3º dia – 1.35-42
4º e 5º dias – 1.43-51
6º dia – 2.1-11 – Início dos sinais de Jesus. João nunca usa a palavra “milagre”. Ele usa “sinal”, no grego sêmeion, que dá a idéia de uma indicação. São “pistas” que ele vai deixando para provar sua tese de 1.1-18.
Os sinais são sete, assim distribuídos:
1º sinal - 2.1-12 - o casamento em Caná. Veja, especialmente, o v. 11. O vinho
novo é melhor (2.10). O vinho novo é o cristianismo e o vinho velho é o
judaísmo. Este é representado pelas “talhas para purificações dos judeus”
(2.6). O vinho era símbolo da alegria e sinal da bênção do messias. Não há
vinho nas talhas do judaísmo. É Jesus quem traz o vinho da alegria. Importante:
mais uma vez, a comparação com Gênesis. A humanidade surge no sexto dia (Gn 1.26-27).
É no sexto dia de João, que a nova humanidade, a humanidade em Cristo, começa a
aparecer. Assim como o Pai só descansou no sétimo dia, quando tinha terminado
tudo, Jesus só descansará que terminar tudo: 19.30.
2º sinal – 4.46-54 – a cura do filho de um oficial do rei. Veja, especialmente,
o v. 54. É no mesmo lugar onde começaram os sinais (v. 46). É a cura de um
gentio. Os sinais são para quem os leia venha a crer e ter vida. Aqui, um
menino que estava para morrer, passa a ter vida (v. 49). Era um gentio. Mas
estes também têm direito à vida.
3º sinal – 5.1-9 – a cura do paralítico. Começa o distanciamento entre Jesus e
o judaísmo. A festa é em Jerusalém (v. 1), mas ele não vai o templo, vai para
Betesda. Neste tanque jaziam enfermos, cegos, mancos e aleijados (v. 2). Estas
pessoas não podiam entrar no templo (2Sm 5.6-8). É com eles que Jesus vai
estar. O templo, símbolo do judaísmo, não o entusiasmava. Ele via a si mesmo
como o templo (lugar de encontro com Deus): 2.19-21. João mostra que é em Jesus
que encontramos Deus: 14.8-11.
4º sinal – 6.1-15 – a partilha dos pães. Veja, particularmente, o v. 14. A
páscoa estava próxima (v. 4), mas ele não vai a Jerusalém e sim a Galiléia, a
terra dos gentios, desprezada pelos judeus (Jo 7.52, Mt 26.69 e Is 9.1-2). O
resultado é ambíguo: a multidão quer fazê-lo rei e Jesus é obrigado a se
retirar. Seu reino era outro: 18.36.
5º sinal – 6.16-21 – Jesus caminha sobre as águas. Os discípulos deixam Jesus
sozinho (6.15). Parecem desiludidos, mas Mateus diz que Jesus os obrigou a
partir sem ele, para orar (Mt 14.22-23). Ele precisava fortalecer-se, depois da
experiência de quase ser tornado rei à força. E eles precisavam conhecer o
poder de Cristo sobre a natureza, para entenderem o significado da
multiplicação dos pães (Mc 6.51-52). Então, ele faz o discurso sobre o
verdadeiro pão, no que se chama de “o grande discurso do pão” (6.22-59). Ele é
o pão (vv. 35, 41, 48, 50-53, 58). Foi um choque, um desalento para muita
gente: 6.60. Uma questão paralela a Gênesis: em Gênesis 1, o Espírito paira
sobre as águas. Aqui, em João, é Jesus quem paira sobre as águas.
6º sinal – 9.1-41 - a cura do cego de nascença. João faz uma analogia do cego
com os discípulos. Eles tinham visto a luz do mundo (1.7-9), mas ainda não viam
bem. Em 8.12 há uma palavra de Jesus que é um prelúdio a este milagre. Isto
porque até mesmo os que criam nele estavam com dúvidas e discutindo com ele:
8.31-33 (observe que a palavra dele é com os que “criam nele”). O final da
história é interessante. O ex-cego é expulso do judaísmo (9.34-35) e só depois
disto é que se rende a Jesus. Note-se que Jesus compara a cegueira com a
incredulidade, no fim do episódio: 9.39-40. O pior cego é o da alma, o que não
quer ver.
7º sinal – 11.1-44 – a ressurreição de Lázaro. É mais um sinal (11.47) e leva
as pessoas a crerem (11.45). Esta é a finalidade dos sinais (20.30-31). É o
mais elevado dos sinais. Lázaro está morto, definitivamente morto. São quatro
dias de morte (11.39). Para o judeu, a alma do morto levava três dias para
caminhar até o mundo dos mortos, o xeol. No quarto dia já estava lá. Jesus o
tira do mundo dos mortos. João faz um prelúdio a este sinal nas palavras de
Jesus em 10.10. Compare 11.32 com 1.4.
Há uma segunda semana, na estrutura de João (12.1 –
“seis dias depois”). É a hora da morte. É o grande sinal. Começa a páscoa, que
trará a morte de Jesus. Ele é o grão de trigo que precisa morrer, como se lê em
12.24. Mas esta morte é sua glorificação: 12.23. Por causa desta morte e
glorificação, ele será o ponto de atração para o mundo inteiro, como lemos em
12.32.
No relato de João, esta páscoa não acontece. Jesus morre na véspera, no dia da
preparação, como lemos em 19.31. No primeiro dia da terceira semana, Jesus ressuscita
(20.1). Esta é a semana que nunca termina, que dura “até que eu venha” (21.23),
que são as últimas palavras de Jesus. Em 13.1 há um jogo de palavras. “Pascoa”
significa “passar”, em hebraico. Na páscoa, no “passar”, é hora de ele “passar
deste mundo para o Pai”. É sua páscoa, também.
6.O GRANDE SINAL
É o trecho de 13.1 a 20.29. Divide-se em três partes:
(1) O lava-pés (13.1-30).
(2) Discurso de despedida (13.31 a 17.26).
(3) Paixão, morte e ressurreição de Jesus (18.1 a 20.29).
A finalidade do lava-pés é orientar a comunidade que dele brotará a viver em
serviço mútuo. Ele fez o serviço de um escravo. A lição é bem clara, como se lê
em 13.12-17. Como algumas igrejas, em que há luta por poder e briga por cargos,
deveriam refletir sobre isto! Este episódio termina com uma declaração de rara
poesia: “e era noite” (13.30). Era noite para ele, como vemos em 13.21. Para
Judas, que deixou Satanás entrar em seu coração. E para a comunidade
apostólica, que ficaria sem Jesus.
O discurso de despedida é comovente. Mesmo ficando sem ele, os discípulos não
devem temer: 14.27. O Espírito Santo virá para ficar com eles. A igreja não é
órfã. Jesus voltou para ela, na pessoa do Espírito Santo (14.18). Toda Trindade
passa a habitar no cristão, como lemos em 14.16 e 23.
Na sua prisão, por três vezes, ele usa “sou eu” ou “eu sou”, dependendo da
forma de se traduzir: 18.5, 6 e 8. No relato da paixão de Jesus, mais uma vez
brilha a genialidade de João. Ele termina o episódio com 19.41-42. Jesus é
posto num sepulcro. Acabou-se tudo! Mas vem o domingo, o dia do cristão, o dia
em que Cristo sai da sepultura, vence a morte (20.1), e passa a ter autoridade
para dizer o que disse em 14.19. Porque ele vive, nós viveremos. E porque ele
foi glorificado, nós o seremos, também: 1João 3.2.
O capítulo 21 é claramente é
um acréscimo de João. Ele terminou a história de Jesus em 20.29. Este capítulo
é uma bem-aventurança para todos os que creriam depois. Para nós, inclusive. O
texto de 20.30-31 é o epílogo e o capítulo 21, um acréscimo. Por que João fez
isto? O capítulo é de uma beleza e espiritualidade comoventes. Pedro deserta.
“Vou pescar” (21.3) é “vou pescar continuamente”, no grego. Pedro estava
desistindo. Ia ser pescador, novamente. Compare isto com Marcos 1.17. Toda a
comunidade apostólica segue a Pedro e toda a comunidade fracassa. Como diz um
cântico nosso, “sem Jesus não dá”.
Na desistência, Jesus se chega a eles (v. 4). A história toma
novo rumo. Sob a direção de Jesus, a pesca é proveitosa. Pedro se preocupa com
João (21.21), o mais moço deles, e é repreendido por Jesus. De maneira
fantástica, João coloca na boca de Jesus a sua última palavra no seu evangelho:
“Segue-me tu” (v. 22). Assim, o evangelista, após terminar sua obra, com uma
bem-aventurança para os que creriam sem ver (20.29), recomeça-a e a conclui,
por fim, com um desafio de Jesus, “segue-me tu”.
CONCLUSÃO - UMA CURIOSIDADE QUE É RELEVANTE
Em hebraico, o nome de Deus é yhwh, impronunciável, que
costumamos mencionar como sendo Iahweh. Só Deus poderia dizer EU
SOU. Judeu algum pode dizer EU SOU. Veja que após esta declaração de
Jesus, os judeus tentam apedrejá-lo (pena de morte para a
heresia). Uma tradução literal seria EU SOU. Veja Êxodo 3.13-14.
João gosta de ressaltar como Jesus se referia a si mesmo e, nestas referências,
como usava o “Eu sou”. Observe isto em 6.41, 6.51, 8.12, e, principalmente,
8.58. Como Jesus falou em aramaico, deve ter ficado bem claro o nome de Deus
para os judeus. Estes nem sequer o pronunciavam, mas Jesus o aplica a si. É por
isso que logo depois deste episódio, vem o do cego de nascença, que termina com
as palavras do Mestre em 9.40-41. João mostra no início que Jesus é o próprio
Deus, encarnado (1.1-4 e 14). Desenvolve este tema por todo o evangelho. E, no
seu último livro (ele escreveu também 1a, 2ª, 3ª João e o Apocalipse) vai
mostrar Jesus dizendo isto a seu próprio respeito: Apocalipse 22.13. Por isto
que podemos dizer que os escritos de João têm como sustentáculo sua declaração
do evangelho, em 1.14: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de
graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai.”